segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Entre a caridade e a filantropia


Belo texto do Padre Antônio Vieira (o cearense) em seu livro "100 Cortes sem Recortes", 1966




As Freiras

Conta-se que a renomada e não menos celebérrima artista de cinema, Rita Hayworth, mais tarde princesa Ali Khan, em visita a um leprosário do Oriente, observou uma jovem religiosa as feridas purulentas de um leproso. Torcendo o seu rosto hipersensível de artista, a bela e requintada atriz disse para a freira:
- Irmã, eu não faria isso nem por um milhão de dólares.
- Nem eu, respondeu a humilde religiosa, sem interromper o seu humilhante trabalho de caridade.
A vida das religiosas é esta história continuada e perene de heroísmo. Dia por dia. Noite adentro. Durante toda uma existência. Atrás de si, deixaram os carinhos e ternuras dos parentes. Os sonhos e as esperanças de uma juventude risonha e feliz. As alegrias e prazeres que o mundo oferecia. As riquezas, a notoriedade, as posições, o luxo, a comodidade. Tudo mesmo. Em troca dos leprosos. Dos filhos sem pais. Dos homens sem saúde ou sem juízo. De todos os infelizes e desgraçados.
Quem as vê passar, de cabeça baixa, olhos pregados no chão, o rosto escondido em negro véu, trajando um hábito feio e desanilhado, ou quem as observa, escondidas atrás de muralhas sem horizonte, há de pensar naturalmente que também nelas morreu a alegria, a felicidade, a juventude.
Puro engano. Ninguém mais feliz neste mundo do que aquele que faz o bem. Nenhuma sensação e felicidade existe maior do que consolar os aflitos, enxugar lágrimas, aliviar dores.
Anjos da caridade, elas se multiplicaram num milagre de bondade, quando nos hospitais vão distribuindo esperanças aos enfermos nos seus leitos, coragem nas salas de operação, renúncia e conformidade junto aos moribundos.
Injuriadas por uns, amesquinhadas por muitos, perseguidas e fuziladas em muitos países, incompreendidas por quase todos, elas não se anulamsurgem, como por milagre, do sangue e das lágrimas das suas próprias co-irmãs, para realizarem na terra, a sublimíssima missão de caridade cristã, e perenizarem, entre os homens, a herança divina do amor ao próximo.
Na China, onde durante séculos o cristianismo encontrou a mais tenaz e dura resistência, ultimamente, legiões de chineses acorrem aos hospitais de religiosas ou às missões católicas para pedirem que lhes falem desse Deus, que ensina os homens a serem tão bons e caridosos para com os infelizes e desgraçados.
O mundo se há de melhorar e modificar, não pela influência das Ciências e das Letras, mas pela força da Caridade e da Bondade, que se irradiam das mãos espirituosas e angélicas das humildes religiosas.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Terra dos Homens




Ontem, dia 14 de Novembro de 2010, foi um dia festivo e alegre para vários jovens da Paróquia de São Gerardo: o Movimento Juventude Shalom da Paróquia completou sua décima segunda primavera, com direito a apresentação de uma bela peça teatral e da presença do pároco.

Era claramento visível no sorriso de vários deles a alegria daquele momento, a euforia daquela comemoração, o contentamento naquela celebração.

Depois da Santa Missa, dirigimo-nos a uma lanchonete, com o propósito de finalizarmos aquele momento diante de uma amena refeição.

No meio das acoloradas convesas, dos exuberantes sorrisos, das animadas conversas, aparece-nos de surpresa uma senhora, já com seus cinquenta anos. Com um pequeno véu na cabeça, visivelmente bêbada, aproximou-se de nós falando as típicas trivialidades daqueles que se deixaram vencer pela bebida: "Sou Dilma. Eu sou é Dilma. Mas perâ aí, deixa eu sentar que eu tô beba".

Afastou-se um pouco de nós. Pudemos esquecer um pouco de sua presença, porém isso não durou muito tempo. Sentou-se na mesa ao lado e começou a exigir que a deixássemos em casa de carro: "Porra! Eu tô bêbada. Me deixa em casa. Vocês são maus. Todo mundo sabe ser mal, mas quando é para ajudar!"

Um grande amigo meu que estava ao meu lado ainda se mostrou solícito:

Ele: "Onde é que a senhora mora?"
Ela: "São Gerardo"
Ele: "Mas em que rua?"
Ela: "São Gerardo".
Ele: "Não, eu sei, mas quero saber a rua.
Ela: Vai...

Bem, não repetirei aqui as palavras agressivas que se seguiram, o que deixou meu amigo visivelmente irritado.

A presença começou a ficar demasiadamente incômoda. Disse que tinha que voltar para casa, pois amava o marido. Disse que ele estava morrendo. Disse que era cigana. E continamos a sermos incomodados pela inoportuna presença daquele senhora bêbeda e agressiva naquele momento festivo. "Ou vocês me matam ou eu mato todos vocês"- chegou a dizer em um dos delírios causados pelo álcool.

Tomou a liberdade de sentar-se conosco à mesa. Dentro em pouco, duas jovens que estavam ao seu lado procuravam conversar com ela, alertando para o risco da bebida. Quando percebi, a senhora estava aos prantos. Seu marido estava morrendo com câncer. Dava golfadas de sangue. Ela dizia insistentemente que o amava e que ele precisava dela.

Percebi, só então, que aquele vício era a forma que ela tinha de esquecer seus sofrimentos, suas misérias, seu marido... de esquecer-se do mundo e de si mesma. Senti-me emocionado diante daquela mulher.

Ela via a morte do seu marido chegar a passos largos- acompanhada de dolorosa agonia e de derramamento de sangue. E assistia aquilo impotente, com as mãos amarradas e os olhos marejadas.

Não a conheço. Provavelmente, nunca a tinha visto antes, nem sequer de relance; mas aquela mulher parecia trazer em si as marcas de uma vida carregada de sofrimentos e sulcada de amarguras - e agora, já idosa, tinha que assistir impotente ao desfalecimento do seu marido.

Ali, a vida me pregava mais uma de suas peças. A alegria exuberante de um momento festivo se deparava, nua e crua, diante do sofrimento e da miséria. Suas lágrimas eram o contra-ponto de nossos sorrisos; seu desabafo, o oposto de nossas conversas.

Assim, somos nós nesta Terra dos Homens. Caminhamos neste Vale de Lágrimas entre as alegrias e as tristezas; as festas e os lutos; a vitalidade e o desfalecimento; o gozo e a dor; a felicidade e as tristezas.

A verdade é que a vida é uma "Roda Viva". Lembro-me que, quando pequeno, minha avó sentou-me no colo, pegou a minha mão, e começou a "desenhar" com seu dedo um círculo, explicando-me que a vida é cheia de altos e baixos, e que nunca sabemos o que nos espera na sua próxima etapa.

Eu estava em uma lado da mesa oposto ao dela. Tenho plena consciência que amanhã posso ocupar o espaço que ela ocupava ontem. Percebi, mais uma vez, que há milhões de almas nesta Terra dos Homens que, consumidas pela dor, necessitam de uma apoio, de uma ajuda, de um ombro amigo- e que também é meu dever ouvir àqueles a quem o mundo não dá direito à palavra e falar àqueles a quem o mundo não quer a presença.

Se andarmos juntos, as quedas da vida serão menos dolorosas, pois o amor não sabe calcular direito: pois quando estamos juntos ele multiplica as alegrias, mas divide a dor.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Aposentadoria Honrosa


Reproduzo aqui uma das histórias mais interessantes que eu conheço, na narrativa do padre Carlos G. Vallés, SJ, no livro "Saiu o semeador...

"Aposentadoria honrosa

Esta é uma história verdadeira, dos anais das estradas de ferro da índia.

Um trabalhador chamado Ramsharan Chaudhari aposentou-se, depois de haver trabalhado durante trinta anos no mesmo cargo, na mesma estação de Benarés.
Seus companheiros e chefes organizaram uma festa de despedida, com as honras que ele merecia, por sua constância e fidelidade ao trabalho, e lhe ofereceram um relógio de ouro, que cada um ajudara a pagar.
Foram feitos discursos, e lhe deram felicitações, e o diretor geral da ferrovia, que presidia a festinha, perguntou:
- Você poderia, por favor, nos explicar que tipo de trabalho foi que realizou tão fielmente, durante todos esses anos?
O bom homem mostrou então o grande e pesado martelo que tinha sido seu fiel companheiro e sua única ferramento durante trinta anos, e que trouxera consigo à festa, e explicou: - "Quando um trem chegava ou saía da estação, eu tinha que dar uma martelada direta em cada roda, de cada vagão, e gritar: "Vale!" Era só o que eu fazia.
- E será que poderia nos dizer- insistiu o inspetor geral- para que fazia isso?
E o honrado trabalhador respondeu:
- Isso eu nunca fiquei sabendo, senhor.
Quem deve saber são vocês da diretoria.



O bom homem tinha passado toda uma vida experimentando as rodas dos trens sem saber o que fazia, isto é, sem experimentá-las. O barulho que produz a roda, quando recebe uma martelada, e que é diferente em cada caso, devria dizer ao trabalhador, bem preparado para seu ofício, se a roda estava ou não em condição de continuar sendo usada na viagem. Mas àquele homem não tinham ensinado essa parte de seu trabalho, e ele tampouco havia perguntado. Durante longo trinta anos, vinha martelando roda depois de roda,e gritando: "Vale!", e ia para casa satisfeito, todas as noites, por ter cumprido o dever e ganhado honestamente seu salário. Não importa quantos acidentes de trem ocorreram durante todo esse tempo, por causa de um defeito não descoberto em uma roda qualquer. Ele tinha feito com a maior fidelidade, ao longo dos trinta anos, a mesma coisa que lhe tinham mandado fazer no primeiro dia de serviço.

Achava que não devia fazer perguntas, para não criar problemas. Bastava fazer exatamente o que lhe haviam dito. Ainda que as ordens parecessem absurdas, ele pensava que os superiores entendiam e sabiam o que estavam fazendo. Não lhe pagariam salário para nada fazer. Alguma razão deviam ter para que o mandassem dar aquelas marteladas. O trabalho talvez fosse monótono e cansativo, mas o bom homem sentia-se orgulhoso, porque cumpria seu dever. E passara uma vida inteira dando marteladas. E, no fim, ganhou um relógio de ouro de presente. Uma aposentadoria honrosa.

Não faça perguntas. Os chefes sabem de tudo. Muito embora não parece fazer sentido algum no trabalho que você faz, continue trabalhando. Tudo o que pedem é que você faça o que mandam. Continue dando marteladas nas rodas. Dia após dia. Trem após trem. Faça a mesma coisa que mandaram fazer no primeiro dia, embora a tenha de fazer durante muitos anos. Os princípios eternos não se alteram. Continue assim a vida inteira, e no final talvez ainda ganhe um relógio de ouro. E farão uma festinha em sua honra. E, se alguém perguntar o que você fez a vida inteira, não tenha vergonha de responder. Todos eles fizeram a mesma coisa."

Padre Carlos G. Vallés